Durante uma tarde de trabalho alguns dias atrás com o artista/amigo/colaborador Poty estávamos mais uma vez filosofando sobre a maneira como nós e outros compositores (especialmente os mais jovens) lidam com a ansiedade no que diz respeito aos seus novos lançamentos.
É interessante (e assustador ao mesmo tempo) ter caminhado paralelamente à toda uma transformação na realidade da vida artística dos músicos. Na minha juventude, o plano geralmente era formar uma banda, trabalhar em uma demo, ser encontrado por uma gravadora, gravar um disco de verdade e torcer pra que o sucesso e o reconhecimento viessem.
Conforme o processo foi se “digitalizando” e sendo devorado pela internet, os episódios desta jornada foram mudando drasticamente. Hoje quase ninguém quer formar banda (no máximo ter uma banda para tocar as SUAS músicas), a gente consegue gravar em casa algo bem melhor do que uma demo, gravadoras não bancam nada, singles são mais importantes do que discos e o sucesso é um bicho completamente diferente.
Se isso ficou melhor ou pior é uma avaliação bastante subjetiva. Eu vejo artistas de porte pequeno com uma legião de seguidores muito fiel que esgotam qualquer tiragem física (CDs, fitas K7, LPs) que eles lançam mesmo com a obra disponível no streaming. E nesse sentido, vender tudo isso dá um retorno financeiro muito maior do que alguns milhões de plays no Spotify. Sendo assim qual das opções significa mais sucesso? Esgotar uma pequena tiragem ou ser ouvido por milhões?
Eu admito que observo com certa angústia quando um jovem artista passa semanas preparando o terreno pro lançamento do seu single e depois só aproveita uns poucos dias de engajamento antes da faixa cair no esquecimento no meio de tanta música nova disponível. É ainda mais desolador constatar que mais de 100 mil faixas novas de música são jogadas na rede mundial de computadores todos os dias.
Mas a verdade é que mesmo com esse cenário pouco animador é muito difícil parar de criar. Eu particularmente não consigo deixar de inflar estes números absurdos. Só esse ano já estou indo pro meu sexto album como autor. Qual o sentido de criar e lançar tanta música?
Não sei se saberia explicar racionalmente. Dias atrás a Aline Valek postou no Instagram um vídeo falando do Cartas a um Jovem Poeta do Rainer Maria Rilke, um livro que me impactou muito na juventude e que considero um dos pilares dessa obsessão criativa que sigo cultivando. Tem um trecho específico dele que nunca me abandonou:
Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: ‘Sou mesmo forçado a escrever?’ Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade.
Com esse pensamento sempre por perto eu segui insistindo, chegando ao ponto de eventualmente transformar essa obsessão em uma forma de subsistência ao redirecionar um pouco deste excesso para a criação de música para publicidade e também ao trabalhar como produtor fonográfico.
Ainda no meio do processo de escrita deste texto topei com essa entrevista do Damon Albarn (Blur/Gorillaz) lidando com essa questão de não conseguir parar de compôr. Um trecho que me pegou muito ali foi ele afirmando que sabe que isso é um problema mas ele prefere tratar como se não fosse. Empatizo!
Mas e como fica pra quem teve sua jornada começando mais adiante, já sob a pressão esmagadora e muito menos impessoal das redes sociais?
E foi aqui que a conversa com o amigo Poty me suscitou o pensamento de que nessa era onde o engajamento (de todo tipo) é tão importante, a vida do artista traz um certo paralelo com um relacionamento amoroso. Se de um lado do espectro temos amor, na outra ponta não fica o ódio e sim a indiferença.
E quando não estamos preparados pra lidar com essa invisibilidade, isso pode ser mais esmagador que uma crítica negativa/rejeição. Afinal alguém pode até estar falando mal do meu trabalho, mas ao menos me ouviu.
O jovem artista então encara duas angústias pois quando o registro físico predominava não fazia diferença quantas vezes seu fã rodava o disco ou fita que tinha comprado. O valor já estava garantido. O que realmente fazia diferença era se a sua música tocava no rádio ou outras mídias (potencializando assim mais vendas).
No modelo digital atual um numero estratosférico de “plays” significa um valor financeiro irrisório comparado com o que tínhamos antes. Poucas reproduções na sua música significa assim um golpe no ego e outro no bolso ao mesmo tempo. É um sistema muito precário.
Fico agora a curioso se os artistas da música acabarão seguindo o caminho do pessoal da TV/Cinema nos EUA se mobilizando contra uma remuneração tão injusta.
Troca da guarda
Terminei o livro sobre Serge Gainsbourg e já estou iniciando a próxima leitura sobre música. Continuando num território histórico, mas agora com uma lente mais ampla.
Bedroom Beats & B-Sides: Instrumental Hip Hop & Electronic Music at the Turn of the Century de Laurent Fintoni é uma jornada do autor por esse recorte temporal que mencionei no bloco anterior, quando a música deixa de ser um produto exclusivo de grandes estúdios e passa a existir em pequenos quartos onde algumas revoluções acontecem.
Vai ser uma leitura mais demorada, pois ouvir e estudar as muitas faixas mencionadas vai demandar um número maior de pausas. Mas prevejo mais um grande aprendizado chegando aí. Provavelmente estarei dividindo por aqui as descobertas mais interessantes.
Rapidinhas
Acho que até hoje nunca tinha ouvido a gravação original de “Girl, You’ll Be a Woman Soon” e achei mais bonita que o cover imortalizado em Pulp Fiction. Tentei descobrir se esse arranjo veio da lendária Wrecking Crew mas não obtive sucesso.
Lembrando absolutamente do nada que a música neste infomercial que roda no filme “The Running Man” (O Sobrevivente) era a trilha sonora no programa de auditório Passa ou Repassa do SBT. Descobri isso quando comprei o LP da trilha do filme uns 25 anos atrás. Interessante que esse formato de comercial distópico também aparece em “Robocop”, lançado no mesmo ano.
“Roubartilhando” esse link que peguei da newsletter Recomendo sobre simulações sonoras de fenômenos do espaço: Sounds of Space.
Prata da casa
Essa semana produzi rapidinho uma versão “power trio de um homem só” da faixa Supervillain Theme do Madvillainy.
Essa tava no meu caderninho faz semanas já e quando surgiu uma session pra gravar para alguns outros sons não perdi a chance. Gostei muito do som de bateria que consegui ali e muito devo dele à este mágico plugin chamado Bad Tape da Denise Audio.
Apenas adicionando uma curiosidade sobre esse album incrível, vale lembrar da história do vazamento que ele sofreu online quando o duo criativo por trás dele esteve no Brasil em 2002. Madlib costumava queimar constantemente CD-Rs com as faixas em andamento e despreocupadamente deixava estes discos largados nos quartos de hotel. Algum malandro passou a mão em um destes e largou na web, o que causou pânico no selo Stones Throw, que achou que ia falir por conta disso (a expectativa de sucesso do album era considerável). Felizmente, o efeito foi o inverso. Essa cópia não finalizada multiplicou a hype sobre o disco e só aumentou o número de vendas quando ocorreu o lançamento definitivo.
Dias atrás no Twitter pesquei essa foto maravilhosa do Madlib e do MFDOOM fazendo crate digging em São Paulo:
Finalizo essa edição com esse divertido vídeo do guru Brian Eno passando trabalho numa entrevista com uma intervenção felina. Me identifico muito!
Até a próxima, amigos.
Eu não fazia ideia do lance do passa ou repassa haha mas a trilha do O Sobrevivente é muito boa! A música do final, quando o Schazzenager beija a moça também é demais. Puro suco dos anos 80!