Continuando a leitura da biografia de Serge Gainsbourg (agora adentrando os anos 70) já foi possível notar pelo menos 2 ou 3 momentos onde ele foi um precursor na sua abordagem criativa. Acabei de passar pelo capítulo que detalha a gravação (e subsequente recepção) do maravilhoso album conceitual Historie De Melody Nelson, o único que eu conhecia relativamente bem antes desta imersão.
Pra gente que já ouviu este disco na condição de obra-prima quase unânime, fica até difícil imaginar que ele tenha sido um fracasso retumbante de vendas quando saiu.
Gainsbourg era muito antenado nas novidades e não tinha muito escrúpulo em se apropriar de algo se achava que ia colocá-lo nas paradas de sucesso. Em 1964 por exemplo ele lançou Gainsbourg Percussions, onde simplesmente surrupiou bases de percussão de um álbuns de artistas africanos e latinos pra construir canções com um tempero diferenciado. De uma só tacada ele praticou os conceitos “sampling” e “world music” bem antes de eles sequer serem definidos. Até marchinha ele fez:
Como comentei na primeira newsletter, as comparações com David Bowie vão reaparecendo com frequência no livro. Eles são criativamente inquietos, se cercam de um grupo de colaboradores brilhantes e se utilizam da controvérsia como ferramenta de divulgação.
Melody Nelson profetiza o som de grupos como Portishead e Air. Quem for fã do lindo album Sea Change do Beck poderá ter uma boa surpresa ao encontrar o (agora) clássico francês pela primeira vez. O próprio Beck organizou um grande show tributo à Serge em 2011 além de ter produzido o album IRM de Charlotte Gainsbourg.
Como disse lá no início, é difícil hoje assimilar que esse disco tenha fracassado. A produção perfeita, banda afiadíssima e os arranjos de cordas arrebatadores somados com o clima provocante e apelativo aproveitando toda química da vida real com Jane Birkin deveriam ser a fórmula fácil para um sucesso estrondoso. O disco é bastante cinematográfico e veio acompanhado de um filme para TV que funcionava como videoclipe (do disco inteiro). Mais uma sacada à frente do seu tempo pra lista.
Mas somente depois de uns vinte anos (e passada a morte de Serge) que ele realmente começou a ser reconhecido e cultuado de forma mais ampla.
E pelo prosseguimento da discografia parece que essa decepção realmente atingiu Gainsbourg pois seu álbum seguinte, Vu de L'extérieur, é muito mais linear e todo apoiado numa linguagem escatológica com títulos de música tipo “Titicaca”, “Panpan Cucul” e “Pamela Popo”. Conhecer este momento infantilizado da carreira do astro francês adicionou uma camada especial de significado neste mashup bobo que fiz alguns anos atrás:
Bem, a essa altura se quem está lendo ainda não ouviu o album espero que esteja louco de vontade de fazê-lo. Mas queria prosseguir agora refletindo brevemente sobre como esse fenômeno do reconhecimento conversa com a realidade criativa atual.
Começando pelo fato de que quanto mais tempo passa mais difícil fica encontrar uma peça musical sem conseguir traçar todo um DNA através da história da música. Se apropriar de uma linguagem musical distante na época da rede mundial de computadores já não é uma “trapaça” tão simples como antes (e pode ainda te complicar legalmente). A música sempre foi um processo de recombinação e reciclagem de onde nascem as novidades interessantes. Mas a maior parte dos compositores e produtores em atividade não percorre caminhos muito ousados, preferindo a segurança das fórmulas (todo mundo tem boletos pra pagar).
Esse complicado casamento entre tecnologia e dinheiro também influenciou essa transformação. Era comum nos anos 70 as gravadoras apostarem em projetos ambiciosos investindo somas consideráveis de dinheiro. A música brasileira daquela década é um exemplo claríssimo disso com fracassos retumbantes como Araçá Azul do Caetano Veloso (que assim como Melody Nelson hoje goza de status cult). O investimento era seguro pois outros lançamentos cobriam os prejuízos das ousadias que não funcionavam. Dos anos 80 em diante a tecnologia digital começa a invadir o espaço de gravação cada vez mais, até que nos anos 2010 em diante fica muito acessível se gravar de maneira profissional e o investimento das gravadoras acompanha essa curva. Maior “democratização” com menor investimento. Digitalização constante de todo o processo e desvalorização do produto. O artista passa a investir mais do que o ouvinte e do que a gravadora.
Isso abre cada vez menos espaço pra artistas todos os tamanhos tentarem inovar. Os grandes não querem alienar os fãs e os pequenos querem um caminho que garanta algum retorno. Criadores como Gainsbourg e Bowie, que saltavam para mundos completamente diferentes num curto período de tempo não são exatamente raros. Eles só têm muito menos espaço pois essa é escolha arriscada.
E aí pra fechar temos a pressão descomunal pelo sucesso. Não dá pra esperar 20 anos (ou até mesmo não estarmos mais neste plano de existência) pra ser considerado gênio. Temos jovens gravando um disco no quarto e recebendo milhões de streams.
No fim das contas já não tem mais nada que ver com arte ou com legado. É sobre sobreviver antes de conseguir essa imortalidade.
Bonus track (não sei se já ouvi algo mais à frente do seu tempo do que isso):
Um outro lado negro
Falando agora de um clássico que impactou desde o seu lançamento (e ainda segue firme), em alguns meses teremos a chance de ouvir uma versão completamente nova de Dark Side of the Moon do Pink Floyd repensada pelo seu principal arquiteto.
Fiquei bastante curioso pelo resultado final depois de ouvir a versão de “Money” que já saiu como prévia. Sou muito fã da ideia de regravar + reinventar um album na íntegra então imagina o quão instigante pode ser quando feito pelo próprio criador 50 anos depois. E o último album de estúdio dele (Is This The Life We Really Want?) foi realmente excelente.
Coincidência aleatória: a faixa título desse album de 2017 tem um certo toque de Melody Nelson no arranjo (sem contar o vocal grave a mais “falado” do Roger nela).
Rapidinhas
O meu guru Trentemøller se apresentou no programa “Echoes” da Jehnny Beth e para nossa sorte e o set está online na íntegra:
Jessica Pavone e esses arranjos de corda esquisitões maravilhosos:
Apaixonado por este clipe e som (apesar das guitarras escolhidas ali terem entregado bastante algumas influências):
E temos som novo da maravilhosa Mitski e até mesmo um vídeo dela explicando toda a criação da faixa:
Prata da Casa
Aproveitando o gancho do Roger Waters regravando o Dark Side ali em cima achei pertinente comentar minha própria aventura em recriar um album inteiro. No início deste ano eu lancei no mundo Trans ‘23, minha releitura de um album “maldito” do Neil Young lançado nos primeiros dias de 1983.
Essa foi uma fase onde a lenda do rock resolveu experimentar com sintetizadores e vocoders tentando mesclar isso na sua sonoridade tanto por ousadia criativa como também como provocação contra a gravadora com a qual tinha recentemente assinado.
Eu tenho um fetiche por estes discos estranhos (tal qual Drama do Yes ou Music From “The Elder” do Kiss, por exemplo) e sempre quis regravar algum deles na íntegra.
Com a ajuda de um grupo incrível de vocalistas (Andrio Maquenzi, Dyego Gheller, Jonts Ferreira, Poty, Gabriela Lery, Pedro Petracco e Carlinhos Carneiro) consegui em um período de mais ou menos um ano realizar essa recriação na íntegra, imprimindo a minha leitura criativa pessoal em cada faixa.
Até a próxima, amigos!