Semana passada eu lancei ao mundo meu sexto album de composições musicais do ano de 2023: “Tapes Tree”. E logo em seguida me ocorreu usá-lo como mote para este quarto capítulo da minha newsletter.
O album é uma compilação de beats que eu criei para minha participação no Clube da Costura, um grupo de produtores/beatmakers aqui de Porto Alegre que se reune de maneira regular online (e algumas vezes presencial) para apresentar um beat composto a partir de samples tirados de um disco previamente sorteado.
Bom, acho que cabe um paradinha rápida pra explicar como funciona o sampling, né? nem todo leitor aqui é versado nos meandros da produção fonográfica, eu imagino.
Esse vídeo que tem como objetivo demonstrar a genialidade dos caras do Daft Punk resume bem o processo.
Apesar de termos alguns exemplos que precedem, essa técnica foi popularizada pelos produtores de hip-hop na virada dos anos 70 pros 80 (inicialmente como um recurso pra contornar a indisponibilidade de equipamento musical). Em essência, trata-se de pescar trechos de gravações pré-existentes pra criar novas composições. Então por isso se acaba usando esses temos como “picotar”, “recortar” e é claro: “costurar”.
Então voltando ao Clube, trata-se de uma das iniciativas criativas mais interessantes que já tive chance de participar pois cada membro tem um estilo bem particular de produzir e manipular estas amostras.
Logo que eu comecei a participar dos encontros, uma coisa que rapidamente me chamou atenção (além do clima de camaradagem incrível) foi o Clube ser um espaço de escuta ativa raríssimo nos dias de hoje.
Pare pra pensar um instante aí: qual foi a última vez que você escutou música? Digo, não botar pra tocar no celular/computador/Alexa e ouvir enquanto faz outra coisa. Escutar mesmo, tipo sentar só pra fazer isso. Raro, né?
A gente mal consegue se fixar em um filme, muitas vezes não resistindo aquela olhadela no celular no meio da exibição. Que dirá algo que nem precisamos dos olhos pra fazer.
Agora imagine uma espaço dedicada de imersão de escuta e ainda por cima de música completamente inédita. Mesmo nos encontros presenciais é incrível observar a dedicação dos participantes em apreciar os detalhes da criação de cada um dos outros membros. Geralmente ainda rolam perguntas, como fez tal coisa, se todos os samples foram do album, etc. Uma grande troca de conhecimento que ainda segue se desdobrando em um grupo de WhatsApp.
Essa bonita experiência mexe com vários âmbitos problemáticos da nossa realidade e eu gostaria de focar aqui em dois:
Primeiro é que a gente vive um dia a dia muito corrido e a ideia de dedicar um momento específico pra escutar música provavelmente tende a ser interpretada como perda ou desperdício de tempo (poderia estar realizando outras tarefas simultaneamente, né?). E me ocorre que parte dessa percepção também vem da mudança do físico pro digital. Lembram quando a gente passava horas numa loja pra escolher qual disco que ia comprar? Nessa hora o tempo não parecia tão importante. E depois chegando em casa o ritual de colocar pra tocar, abrir o encarte pra ver o que tinha de informação (e arte) e simplesmente ouvir com toda atenção pra descobrir se investimos bem o suado dinheiro. Agora é clicar em um app no celular ou browser e basicamente toda música do mundo está ali. O esforço é mínimo e o interesse acaba sendo proporcional. E a gente nem percebe.
Em segundo lugar temos o aspecto coletivo. Eu tenho lido e assistido conteúdo lidando com esse empenho do capitalismo em explorar o individualismo como meta (algo que o Jason Pargin classificou muito bem como “Solitude Propaganda Industry”) e estas reuniões são uma afronta violenta à este projeto. Mesmo que a maior porcentagem dos beats apresentados seja a criação de uma pessoa só, acontecem colaborações com alguma frequência além de o grupo em si acabar estimulando parceiras criativas fora da atividade do Clube. As reuniões não apresentam nenhum caráter de consumo nem de competição. Produtores com 15-20 anos de carreira dividem espaço com novatos que estão arriscando mexer com um software de gravação pela primeira vez. Todos os esforços são igualmente louvados. É o maior pesadelo do capitalismo.
Algumas semanas atrás subi um vídeo que fiz com registros de uma reunião presencial usando o meu beat daquele dia como trilha:
Mas felizmente ainda temos alguns outros exercícios de escuta dedicada acontecendo por aí. Durante a lenta elaboração deste texto descobri que o novo album da maravilhosa Mitski vai ter pré-audições em salas de cinema, na escuridão. A inveja que eu tenho das pessoas que vão estar nestes eventos não pode ser medida.
Outros artistas que admiro (Steven Wilson, Trentemøller) também têm trabalhado com esse formato de prévia em alguns projetos recentes. É algo que em algum momento eu gostaria muito de realizar também a respeito dos meus albuns.
Mas até isso ser viável sigo com a experiência maravilhosa do Clube.
Apêndice
Eu já tinha esse assunto como concluído, até me deparar com este texto publicado no Guardian sobre os fones de ouvido com cancelamento de ruído.
Quem me conhece bem sabe como o assunto me coloca num modo palestrinha beirando o insuportável. Faz um bom tempo que eu não consigo deixar de conectar a proliferação deste acessório com a multiplicação dos estabelecimentos de venda de aparelhos de audição.
Alguns aspectos deste texto (como o fato de em muitos casos a fabricação dos fones e dos aparelhos auditivos estar sob a mesma marca) reforçam muito a minha bronca.
Acabei abrindo um papo muito legal no grupo de WhatsApp exclusivo de apoiadores da
sobre isso e notei que via de regra o fone de ouvido aparece como maneira de escapar do ruído urbano incessante. O que nos levou ao pensamento de que poluição sonora não é um assunto levado a sério mas que tem consequências pesadas especialmente na nossa fase final da vida pois o uso exacerbado deste equipamento nos leva à perda de audição ou algo ainda pior: Tinnitus (aprendi hoje que chama de “Acufeno” por aqui).E só pra não perder uma chance de interligar isso com a parte inicial desta postagem: o fone é (salvo naquele belo clichê romântico do divisor de fones) uma experiência solitária. Ele isola, cria barreiras de comunicação. Capitalismo wins again!
Rapidinhas
Um dos poucos aspectos que me fascina na condição do artista pop famoso é essa possibilidade do produtor fonográfico propor que a música sendo trabalhada precisa de um baterista humano pra ter a sonoridade certa e a solução é simplesmente dar uma ligadinha pro Chad Smith vir dar uma mão:
A excelente banda The National (A.K.A. amigões da Taylor Swift) lançou duas excelentes faixas novas do nada e essa aqui eu particularmente adorei pois deu espaço pro excelente baterista deles se soltar um pouco mais:
Umas das minhas maiores referências como produtor, Tycho (Scott Hansen), recebeu essa visita do pessoal da Reverb no seu estúdio e explicou o funcionamento geral do espaço. Fiquei particularmente impressionado como nosso workflow é muito parecido (focado na ideia de tudo estar conectado da maneira mais fluída pra que a captação de novas ideias aconteça muito rápido).
Nossas duas principais diferenças são que ele tem muito mais equipamento do que eu (pois é um artista bem sucedido nos EUA) e ele gosta muito de usar fones de ouvido pra trabalhar. Ha!
Prata da Casa
Dois clipezinhos VHS que fiz para duas produções recentes.
O primeiro numa linha já tradicional dos meus vídeos próprios, para uma faixa do album “Tapes Tree” que mencionei na abertura dessa newsletter. Escolhi essa faixa por ela ter samples de um album do Erkin Koray, uma lenda da música turca que deixou este plano de existência recentemente. Fica a homenagem!
O segundo foi o clipe que criei para a canção “Vou Ser Pai” do Poty, primeiro single que produzi pra ele depois do album “Homens & Mundos” do ano passado. Neste vídeo aqui no Instagram eu explico o processo criativo da faixa e do clipe:
Novidade: Playlist da edição
Pegando um gancho de um comentário da
lá no grupo dos Valekers sobre playlists, me ocorreu a ideia de arrematar todas edições com um playlist minimamente conectado com o clima da edição. Esse foi particularmente fácil de compilar, com faixas orbitando o mundo do sampling e dos beats.Por hoje é só, pessoal!
a agonia de ler esse post usando fone cancelador de ruídos ligado no celular que está carregando em outro cômodo da casa...
eu amei o nome do clube! perfeito perfeito.
sobre o fone de cancelamento, eu detesto o meu porque acentua meus fluxos de hiperfoco, cada dia fica mais emocionalmentre dolorido tirar o fone para escutar algo que alguém está dizendo ou trocar de foco para qualquer outra coisa.
mas me sinto refém deles porque o modelo de celular samsung que eu tenho não tem nenhuma entrada do tipo TRS, só um usb-c onde eu já testei alguns fones cabeados e a qualidade do audio é péssima. também já testei 3 modelos diferentes de fone bluetooh sem ter cancelador de ruído, daquele modelo intra-auricular, e não me adaptei. meu namorado trabalha na empresa de streaming de música onde vc fez sua playlist e as vezes ganha uns brindes, quando ele ganhou um modelo novo da bose, me deu o fone e eu me adaptei super bem. mas é isso, eu me isolo real - sendo que nem gostaria me isolar dessa maneira.
o próximo celular vai ter um novo critério de corte.